Limitar a propriedade é democratizar o campo e a sociedade
Medida não nega ou contradiz o direito à propriedade, mas reafirma esse direito e fomenta democracia, pontua o filósofo e teólogo Sérgio Sauer. Plebiscito corre o risco de ser criminalizado por setores conservadores, alerta
por Márcia Junges, IHU On Line
País de proporções continentais, o Brasil tem a contraditória cifra de mais de cinco milhões de famílias sem terra. Tal paradoxo, aponta o filósofo e teólogo Sérgio Sauer, é "fruto de um processo histórico de desigualdade no acesso à terra". Incentivado pelo Regime Militar, o atual modelo agropecuário tem nos latifúndios a base de produção da monocultura e da exportação, e só aprofunda os problemas sociais e ambientais de nosso país. Por essas razões, limitar as propriedades rurais seria uma forma de criar uma reserva de terras destinadas à reforma agrária, mesmo que ainda esteja longe o fim para o "processo histórico de concentração." Sauer explica que a limitação do tamanho da terra não nega ou contradiz o direito à propriedade. "Ao contrário, estabelecer um limite significa, em última análise, reafirmar este direito", além de democratizar a sociedade e, por sua vez, o campo. Sauer alerta para o risco de que o plebiscito de setembro seja criminalizado, a exemplo do que vem acontecendo com os movimentos sociais brasileiros. Segundo ele, essa tem sido a principal estratégia dos setores conservadores. As declarações podem ser conferidas na íntegra na entrevista que concedeu, por e-mail, à IHU On-Line.
Graduado em Teologia pela Escola Superior de Teologia (EST), em São Leopoldo, RS, e em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás), é mestre em Filosofia da Religião pela Universidade de Bergen e doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB), onde leciona e é pesquisador. De 1991 a 1994 trabalhou na Comissão Pastoral da Terra (CPT). É um dos organizadores de Encontro nacional da terra e da água: reforma agrária, democracia e desenvolvimento sustentável (São Paulo: Expressão Popular, 2007) e Reforma agrária e geração de emprego e renda no meio rural (São Paulo: Associação Brasileira de Estudos do Trabalho, 1998). Escreveu, entre outros, Agroecologia e os desafios da transição ecológica (São Paulo: Expressão Popular, 2009), Agricultura familiar versus agronegócio: a dinâmica sociopolítica do campo brasileiro (Brasília: EMBRAPA, 2009) e Terra e modernidade: a reinvenção do campo brasileiro (São Paulo: Expressão Popular, 2010).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Em que sentido a limitação da propriedade da terra representa um avanço na questão fundiária brasileira?
Sérgio Sauer - Antes de qualquer coisa, é inadmissível que o Brasil, praticamente um continente em termos de dimensões ou mesmo de área de terras disponíveis, tenha em torno de cinco milhões de famílias sem terra. Essa contradição é fruto de um processo histórico de desigualdade no acesso à propriedade rural. Infelizmente, o Brasil é um dos países com o maior índice de desigualdade do mundo em relação à distribuição da renda e da propriedade da terra. Segundo dados do Censo Agropecuário do IBGE, de 2006, em um lado do espectro fundiário, quase 86% dos estabelecimentos com área de até 100 hectares possuem apenas 21% das terras. Na outra ponta, os estabelecimentos com áreas acima de mil hectares detêm quase a metade (44,42%) de todas as terras registradas. O IBGE não divulgou todos os dados obtidos. No entanto, sabe-se que menos de 0,5% dos estabelecimentos (mais ou menos 15 mil imóveis que possuem áreas acima de dois mil e quinhentos hectares) abarcam quase 40% do total das terras no Brasil. Em outras palavras, se considerarmos as áreas acima dos 3.500 hectares, a concentração fundiária é ainda maior. Portanto, estabelecer um limite máximo significa diminuir esta discrepância ou desigualdade no campo brasileiro.
Consolidação dos latifúndios
Apesar de ser uma marca histórica no Brasil deste o descobrimento, essa concentração fundiária se consolidou e se aprofundou depois de 1964, com os incentivos do regime militar na implantação da chamada Revolução Verde. Então, o atual modelo agropecuário foi implantado através do financiamento público (crédito farto e barato e isenção de impostos) das grandes propriedades, consolidando os latifúndios como base da produção monocultora de exportação. A incorporação de tecnologia - mais especificamente de insumos industriais e máquinas - tornou-se o modelo produtivo. Grandes extensões de terras, através de subsídios governamentais, capitalizaram-se e tornaram-se produtores de bens exportáveis, mas isso não resultou em desenvolvimento do campo. Este modelo - monocultor e exportador - aprofundou as históricas mazelas sociais e ambientais, sendo que a concentração da propriedade da terra produz famílias sem terra e pobreza no campo brasileiro.
Em outras palavras, a elevada concentração da estrutura fundiária brasileira dá origem a relações econômicas, sociais, políticas e culturais inibidoras de um desenvolvimento que combine geração de riquezas e crescimento econômico; inibe a combinação entre desenvolvimento, justiça social e cidadania para a população rural.
Limitar as grandes propriedades, portanto, resultará na formação de um estoque de terras, as quais devem ser destinadas para fins de reforma agrária. Isso não significa a solução do processo histórico de concentração. Diminui, porém, a discrepância entre as grandes e pequenas áreas e, combinada com outras políticas estruturantes, é a base de crescimento com desenvolvimento.
IHU On-Line - Sob quais aspectos a limitação da propriedade coloca em xeque o patrimonialismo brasileiro?
Sérgio Sauer - Em primeiro lugar, é importante observar que esta proposta de limitar o tamanho máximo não é uma negação do direito de propriedade. Ao contrário, estabelecer um limite significa, em última análise, reafirmar este direito. Apesar de reafirmar o direito de propriedade, estabelecer um limite representa também limitar o poder político, pois justamente esse é o sentido do patrimonialismo - um "sistema político" baseado na propriedade de bens, mais especificamente no caso brasileiro, na propriedade da terra. Em outras palavras, limitar a propriedade é limitar o poder e, por extensão, democratizar a sociedade.
Além do limite político, é fundamental instrumento para colocar freios à especulação imobiliária ou fundiária (que é a obtenção de renda através do preço da terra e não de lucros de produção). Certamente, a taxação (cobrança de impostos) deveria ser um mecanismo complementar ao limite máximo para combater a especulação.
Democratização do campo
Consequentemente, estabelecer um tamanho máximo para a propriedade da terra significará uma maior democratização do campo - as pessoas terão acesso à terra, e com este, acesso a outros direitos como trabalho, alimentação, educação etc., além de uma diminuição da desigualdade reinante no acesso à terra no Brasil. Parece-me que este é o sentido da proposta do Fórum Nacional pela Reforma Agrária e Justiça no Campo. Tem como objetivo chamar a atenção da sociedade brasileira para um problema histórico, que é o custo social e ambiental de tamanha concentração (a especulação fundiária e a renda da terra penalizar toda a sociedade).
Além de diminuir a concentração, há um sentido simbólico importante, ou seja, consolidar a noção de que a terra é um bem da humanidade, e não uma propriedade como outra qualquer. Além disso, é um bem finito, ou seja, a terra é um bem que não se pode reproduzir, portanto, deve ser tratado como mais do que um simples meio de produção ou um bem a ser explorado até o seu esgotamento. Isso também coloca em xeque o patrimonialismo, pois estabelece uma relação diferente com a posse da terra, retirando o caráter absoluto da noção de propriedade privada e transformando naquilo que deve ser, um bem da sociedade.
IHU On-Line - Qual é a importância dessa limitação da propriedade na promoção da justiça no campo e no fortalecimento da agricultura familiar?
Sérgio Sauer - Uma das principais dimensões das injustiças no campo é a alta concentração da propriedade da terra, ou seja, a desigualdade no acesso a um bem finito, o qual é também um meio para acessar outros direitos como o direito ao trabalho, por exemplo. A limitação de uma área máxima tem primeiro como resultado a diminuição desta desigualdade, o que já significará a promoção da justiça.
Em uma realidade de alta concentração, um limite na propriedade da terra representará também um aumento do setor denominado agricultura familiar ou camponesa, no sentido de que mais famílias terão acesso à terra e, consequentemente, trabalharão a terra e produzirão em regime familiar.
Parece-me que o objetivo central do limite de propriedade não pode ser a formação de estoque de terras para fins de reforma agrária, apesar de uma eventual limitação resultaria em terras próprias para serem ocupadas por famílias sem terra. Digo isso por várias razões, mas uma em especial, ou seja, uma parte significativa das grandes extensões está na região Amazônica. Portanto, não devemos fazer uma associação pura e simples entre limite e terras disponíveis.
Mecanismos
Por outro lado, não há como falar em justiça no campo sem uma democratização da propriedade fundiária, mas isto não deve se restringir a apenas às áreas acima dos 35 módulos (limite proposto pela campanha). Primeiro, a Constituição é clara de que a terra deve cumprir sua função social e que todas acima de 15 módulos que não o fazem estão sujeitas à desapropriação para fins de reforma agrária.
Ainda, o fortalecimento da agricultura familiar camponesa não deve se restringir à criação e implantação de políticas públicas que promovam a produção e o crescimento econômico. É preciso uma série de mecanismos (acesso à educação, saúde, assistência técnica, formação profissional para jovens etc.) para promover o desenvolvimento. E, é claro, a realização da justiça também com o acesso ao bem mais importante que é a terra, portanto, a realização da reforma agrária.
IHU On-Line - Quais são os principais entraves para que isso ocorra efetivamente?
Sérgio Sauer - Uma das características centrais do chamado patrimonialismo é justamente a estreita relação entre propriedade - ou posse de um bem, especialmente da terra - e poder político. Sem sombra de dúvidas, esse é o principal entrave, ou seja, se está reivindicando o limite de uma das fontes do poder. A partir disto, a detenção ou propriedade da terra não se reduz a um problema (ou cálculo) econômico. Ou seja, não se reduz a uma relação entre o custo ou preço da terra e os recursos públicos disponíveis para adquirir essa terra para fins de reforma agrária, ou mesmo para uma transação de compra e venda entre dois sujeitos. A importância da terra não se reduz a um cálculo econômico (ou poder de compra), mas implica em relações de poder, o que historicamente é um dos principais fatores que impediram qualquer política de democratização do acesso à terra no Brasil. A partir dessa relação de poder (patrimonialismo) é que, historicamente, foram construídas as alianças que sempre governaram o país. Isto não é nada fácil de romper, pois novamente, não se trata apenas de entender que a democratização da propriedade fundiária resultaria em um desenvolvimento social com crescimento econômico. Apesar do discurso de que o Brasil é um país urbano e/ou industrial, a terra se mantém como um mecanismo central nos processos de dominação.
Terra, mecanismo de dominação histórica
Como isso se manifesta na sociedade? Um sinal claro de que a terra não é só um meio de produção foi, ainda em 2004, a rejeição da Medida Provisória 192 pela Bancada Ruralista no Congresso. Esta MP abria a possibilidade do Estado via INCRA indenizar com pagamento em dinheiro (e não em título da dívida pública) a terra nua nos casos de desapropriação. Em qualquer racionalidade baseada apenas na busca de lucros ou vantagens financeiras, essa era uma excelente medida, pois daria liquidez a terras que não cumprem a função social. No entanto, a Bancada Ruralista derrotou a MP no Congresso alegando que essa era mais um incentivo às ocupações. O que estou tentando dizer é que as disputas (políticas) não se restringem a simples oferta e demanda, como querem muitos "entendidos" sobre o assunto. Estamos tratando de um mecanismo de dominação histórica e com o qual, infelizmente, todos os avanços produtivos, modernizantes, não foram capazes de romper. Consequentemente, a terra como um lugar e meio de poder é o principal problema ou entrave a qualquer democratização no campo brasileiro.
IHU On-Line - Como a bancada ruralista reagiu à proposta do plebiscito de setembro?
Sérgio Sauer - Confesso que não vi ou li nenhuma manifestação mais clara de representantes da Bancada Ruralista à proposta de limitação ou de uma consulta à população brasileira sobre este tema, inclusive porque a principal preocupação do momento é o processo eleitoral. No entanto, a prática mais comum deste setor é a negação explícita e incondicional de qualquer tipo de avanços no campo de termos de reconhecimento de direitos ou da democracia. As reações da Bancada Ruralista, por exemplo, ao texto do III Plano Nacional dos Direitos Humanos (PNDH) são sintomáticas do que estou dizendo. Associando a outros setores retrógrados da sociedade, o setor ruralista "leu" aquele artigo que propõe negociação entre as partes, com o intuito de evitar conflitos nos despejos em casos de ocupações de terras, como uma negação do direito de propriedade. Ou seja, não há qualquer possibilidade de negociação ou de mediação nos casos em que há disputa pela terra, nem mesmo a partir da perspectiva dos direitos humanos.
Parece-me que esta manifestação em relação ao III PNDH evidencia a posição do setor ruralista a qualquer proposta ou política voltada para a democratização das relações no campo. Consequentemente, se ainda não houve reações públicas ao plebiscito, ou melhor, à proposta de limite à propriedade da terra, estas virão rapidamente.
O mais importante, no entanto, é que a proposta de limite deve necessariamente passar pelo Congresso; deve ser aprovada como lei ou emenda à Constituição. Sem sombra de dúvidas, essa é uma barreira a mais, pois a Bancada Ruralista continua tendo uma representação significativa nas duas Casas Legislativas.
IHU On-Line - O clamor popular pela terra, expresso pelo plebiscito, corre o risco de ser criminalizado, como outras demandas dos movimentos sociais? Por quê?
Sérgio Sauer - Como disse, as reações a possíveis avanços no campo dos direitos são imediatas e tendem a ser sempre muito aguerridas. Nesse sentido, entendo que a tendência será mesmo de criminalizar (aqui entendido como uma tentativa de atribuir à ação do outro um caráter de transgressão da lei ou da ordem!) a iniciativa, acusando as entidades organizadoras como promotoras de "distúrbio" ou desrespeitar a lei e a Constituição (que garante o direito de propriedade). No entanto, as ações de criminalização (sempre entendendo a criminalização como aquela ação que imputa ou procura imputar ao outro a responsabilidade por um crime, ou pela violação de uma lei ou da ordem) se tornaram, nos anos mais recentes, na principal estratégia dos setores conservadores. Não é uma prática nova, mas vem se tornando cada vez mais comum e está no contexto das disputas por diferentes projetos de sociedade. A criminalização é, portanto, um mecanismo utilizado para deslegitimar as reivindicações e lutas dos movimentos sociais e entidades populares, sempre com o intuito de isolar estas lutas e bloquear apoio de outros setores também populares. Consequentemente, mais importante que as reações contrárias dos setores que querem manter a concentração da terra e as injustiças no campo, é o apoio e a participação dos setores organizados da sociedade: estudantes, profissionais, lideranças sindicais etc. ,no sentido de promover o debate sobre esta problemática que afeta o conjunto da sociedade brasileira.
IHU On-Line - Como a sociedade compreende esse debate da limitação da propriedade da terra?
Sérgio Sauer - Um dos problemas centrais deste debate - e os meios de comunicação ajudam nessa distorção - é que a opinião pública tende a restringir a problemática da terra e da concentração fundiária como um problema exclusivo ao campo, dos sem terras. Ou seja, os prejuízos sociais, ambientais, econômicos e políticos da alta concentração da propriedade da terra não são vistos como um problema do conjunto da sociedade. Por exemplo, não é frequente se fazer associações entre o êxodo rural - expulsão das pessoas do campo - como a principal causa de problemas urbanos como o crescimento desordenado das cidades, a favelização, a pressão social sobre os recursos para infraestrutura nas cidades, etc. É preciso colocar em perspectiva e entender a problemática da terra como um tema que diz respeito a toda a sociedade, tanto no sentido de evitar os efeitos perversos da concentração como no sentido de que a preservação deste bem finito é um dever e um direito de todas as pessoas. O plebiscito, pelo menos é isto que eu espero, deve ser um momento de diálogo com a sociedade a respeito deste tema tão importante. Para a necessidade delimitar o uso de um bem que pertence a toda a sociedade!
Fonte: Revista do Instituto Humanitas Unisinos (IHU)
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segunda-feira, 23 de agosto de 2010
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